Brasil: como deveria ser (Patricia Takehana | Bagagem de Memórias)

By | 09.05.2021

“Brasil: como deveria ser” é uma série com depoimentos de blogueiros que moram ou já viajaram para o exterior contando realidades, vivências e experiências que poderiam/deveriam existir no Brasil. A ideia surgiu pelo fato de ouvir muitas vezes que o Brasil é assim pois tem pouca fronteira com outros países, levando o povo a aceitar tudo de braços cruzados. A amiga Patricia Takehana do blog Bagagem de Memórias tem uma ligação muito forte com o Japão e traz alguns exemplos da Terra do Sol Nascente:

Imagine a seguinte cena: seu filho pequeno volta da escola e diz que, além das aulas, teve que limpar a sala, a quadra, servir o almoço e lavar a louça. E mais, isso não foi uma situação pontual, mas é prática da escola e ele terá que fazer isso todos os dias.

Já imagino pais indignados e reclamando com o diretor, pois a escola tem funcionários para fazer essas tarefas enquanto as crianças estão lá para estudar. Isso, porém, é rotina nas instituições de ensino do Japão, um país onde as pessoas aprendem desde pequenas a viver de forma coletiva. Ajudar a manter a escola limpa cria responsabilidade e disciplina nas crianças, que logo entendem que é dever delas manter a organização do local onde estudam para que as crianças do futuro tenham as mesmas oportunidades que elas tiveram. Além disso, os alunos mais velhos recepcionam os recém-chegados todo início de ano letivo e explicam como a escola funciona, o que eles vão aprender, que materiais vão usar etc. Os mais velhos sabem que são responsáveis por ensinar os menores e os novinhos aprendem a respeitar seus veteranos [Clique para ver o vídeo no portal da Globo].

Sakura, a flor de cerejeira, representa a brevidade da vida, que deve ser aproveitada ao máximo.

Sakura, a flor de cerejeira, representa a brevidade da vida, que deve ser aproveitada ao máximo.

Esse aprendizado de manter o local limpo não fica só nas escolas. As ruas do Japão são impecáveis. Uma coisa que os turistas logo percebem é que não há lixo no chão e também não há lixeiras nas calçadas, nas estações de trem ou nas lojas. Então onde jogar aquela garrafa de água vazia, a embalagem do salgadinho ou aquela anotação que você não precisa mais? Como os japoneses fazem? Eles geralmente carregam o lixo e só o descartam em casa. E mais um detalhe: a profissão de gari, aquela pessoa que varre as calçadas e recolhe o lixo das ruas, não existe por lá.


A educação dos japoneses é realmente diferente, tanto que as vezes causa situações de estranhamento. Essa do lixo é apenas uma delas e existem muitas outras. Estive no país do sol nascente 3 vezes e sempre me surpreendo com novos exemplos.

A primeira vez fui com amigos para trabalhar. Nós moramos em uma cidadezinha de interior, entre plantações de chá e arroz onde ninguém falava inglês (nem preciso dizer sobre o português). Estávamos caminhando pela rua e decidimos entrar em uma lojinha simples e pequena em um lugar nada turístico, apenas para dar uma olhadinha. Em qualquer estabelecimento que você entra é recebido com o tradicional “irashaimase”, é a forma deles te dizerem seja bem-vindo, e conosco não foi diferente. Andamos pela loja, olhamos algumas coisas e saímos. Em poucos segundos um senhor saiu de dentro da loja correndo atrás de nós e falando um monte de coisa (em japonês). Eu falava quase nada do idioma, meus amigos falavam nada ou apenas o básico e demoramos um pouco para entender o que tinha acontecido. Resumindo a história, o senhor queria saber se tínhamos saído da loja porque não encontramos o que procurávamos e veio se desculpar por não ter conseguido atender nossas necessidades naquele momento. Talvez não seja costume deles entrar em lojas apenas para olhar ou não seja muito educado sair sem comprar nada. Nunca entendi o motivo daquele senhor ter corrido atrás da gente, mas me marcou o fato dele sair da loja preocupado conosco e ainda se desculpar por não ter ajudado.

Uma das ruas de Kyoto, a capital cultural do Japão.

Uma das ruas de Kyoto, a capital cultural do Japão.

A segunda visita ao Japão foi em família. Estávamos no oitavo andar de uma loja de departamento quando uma música começou a tocar. A mesma melodia toca diariamente no mesmo horário e isso quer dizer que faltam poucos minutos para as lojas encerrarem suas atividades do dia. Imediatamente as pessoas começaram a caminhar para as escadas rolantes com a maior naturalidade. Não teve mais 5 minutinhos para experimentar uma roupa ou correria para entrar na fila do caixa e pagar as compras no último segundo. No Japão horário é cumprido e o seu tempo não vale mais que o de ninguém. Ao começar a descer as escadas e seguir para a saída os funcionários estavam nas portas fazendo reverências. O que significa isso? Eles estavam agradecendo a presença dos clientes na loja. O agradecimento é para todos, independente de ter feito compras ou não.

Na última passagem pelo país estava sozinha. Precisava sacar dinheiro e meu cartão não funcionava nos ATM (que estão por toda parte, incluindo todas as lojas de conveniência e estações de trem e metrô). Pesquisando na internet, descobri que só conseguiria sacar em máquinas de uma determinada rede, anotei o endereço, dei uma olhada no Google maps e fui para rua procurar o tal lugar. O Japão pode ser exemplo em muita coisa, mas em endereço com certeza eles não são. Uma sequência de números que não fazem o menor sentido para mim. Cada área do bairro tem um, cada quarteirão tem outro e eles não são muito fáceis de identificar. Óbvio que não encontrei o lugar e fui pedir ajuda para um casal que estava na saída da estação, aparentemente esperando alguém. Eles colocaram o endereço no GPS do celular, foram seguindo as indicações, me deixaram na porta do lugar que procurava (era um supermercado e o ATM ficava lá dentro, nunca ia encontrar sozinha) e voltaram para o ponto de encontro correndo para não se atrasarem.

Tem também uma história de um amigo que eu gosto bastante. A forma mais barata de comprar água mineral é adquirir uma garrafa e depois utilizar máquinas de refil. E lá estava ele na fila para encher a sua, quando percebeu que na sua frente estava uma senhora com 4 garrafas na mão. Ele logo pensou “essa senhora vai demorar uma eternidade”. Para surpresa dele, a senhora encheu apenas uma das garrafas e voltou para o final da fila. E assim foi com cada uma delas. Mais um exemplo de que o tempo de ninguém é mais valioso que do outro.

Cadeados simbolizam a união dos casais. Até nisso eles são organizados!

Cadeados simbolizam a união dos casais. Até nisso eles são organizados!

Todas essas situações são bastante pessoais, mas como não citar o exemplo que os japoneses deram para o mundo quando limparam as arquibancadas ao final dos jogos da copa do mundo no Brasil (lembra da relação que eles têm com o lixo?). Ou quando o nordeste do país foi destruído pelo tsunami + terremoto + acidente nuclear, em 2011. Mesmo diante de toda a tragédia e dificuldades como falta de alimentos, de água e de energia, além de tantas casas e estruturas públicas destruídas, os japoneses mantiveram a calma e a ordem, fizeram fila para receber comida, ajudaram uns aos outros. Como não se emocionar com o depoimento abaixo, escrito por um policial que trabalhava no local afetado?

“Ontem à noite fui enviado para uma escola infantil para ajudar uma organização de caridade a distribuir comida aos refugiados. Era uma fila muito longa. Vi um garotinho de uns 9 anos. Ele estava usando uma camiseta e um par de shorts.
Estava ficando muito frio e o garoto estava no final da fila. Fiquei preocupado se, ao chegar sua vez, poderia não haver mais comida. Fui falar com ele. Ele disse que estava na escola quando o terremoto ocorreu. Seu pai trabalhava perto e estava se dirigindo para a escola. O garoto estava no terraço do terceiro andar quando viu a tsunami levar o carro do seu pai.
Perguntei sobre sua mãe. Ele disse que sua casa era bem perto da praia e que sua mãe e sua irmãzinha provavelmente não sobreviveram. Ele virou a cabeça para limpar uma lágrima quando perguntei sobre sua família.
O garoto estava tremendo. Tirei minha jaqueta de policial e coloquei sobre ele. Foi ai que a minha bolsa de comida caiu. Peguei-a e dei-a a ele. “Quando chegar a sua vez, a comida pode ter acabado. Assim, aqui está a minha porção. Eu já comi. Por que você não come”?
Ele pegou a minha comida e fez uma reverência. Pensei que ele iria comer imediatamente, mas ele não o fez. Pegou a bolsa de comida, foi até o início da fila e colocou-a onde todas as outras comidas estavam esperando para serem distribuídas.
Fiquei chocado. Perguntei-lhe por que ele não havia comido em vez de colocar a comida na pilha de comida para distribuição. Ele respondeu: “Porque vejo pessoas com mais fome que eu. Se eu colocar a comida lá, eles irão distribuir a comida mais igualmente”.
Quando ouvi aquilo, me virei para que as pessoas não me vissem chorar.
Uma sociedade que pode produzir uma pessoa de 9 anos que compreende o conceito de sacrifício para o bem maior deve ser uma grande sociedade, um grande povo.
(Fonte: Revista Veja)

Raibow Bridge liga Tokyo a Odaiba.

Raibow Bridge liga Tokyo a Odaiba.

Assim como toda sociedade, eles têm defeitos sim, mas acredito que são exemplo na forma coletiva de se viver. Um povo que não pensa “o que eu vou ganhar com isso”, mas “o que nós vamos ganhar”. Um povo que não se preocupa apenas com o “está bom para mim”, mas com o “está bom para mim e para você também”. Um povo que investe na formação de pessoas, em que educação e cidadania são ensinadas em casa e na escola e que já não se sabe mais se essas atitudes são frutos desses ensinamentos ou raízes culturais.

Colaboração: Patricia Takehana
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